Tire a máscara, quero aprender a falar.
José Henrique Nogueira. Mestre em Educação Musical/Musicoterapeuta Pós-graduado em Construtivismo e Educação
Diretor do Espaço 23 (Música & Educação)
As indicações de tratamento com musicoterapia cresceram muito nesses últimos anos, após a pandemia. Na minha clínica, no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, o Espaço 23, além das tradicionais indicações para Síndrome de Down, Alzheimer, autismo e outras condições, percebi uma maior procura de pessoas interessadas em conhecer outro tipo de terapia, ou mesmo vivenciar as possibilidades terapêuticas da musicoterapia.
Houve também uma procura acentuada de pais interessados em musicoterapia para seus filhos, em sua maioria crianças de 3 e 4 anos de idade, diagnosticadas dentro do espectro autista. Todas apresentavam dificuldades na linguagem, além de níveis relativos de hiperatividade e déficit de atenção.
Neste mesmo espaço de tempo, percebi que os veículos de comunicação e as mídias digitais passaram a divulgar um aumento significativo de casos de crianças com os mesmos sintomas relatados acima, atribuindo esse aumento aos dois anos de isolamento vividos durante a pandemia do coronavírus.
Tais notícias e indicações chamaram minha atenção, e passei a refletir sobre os fatos. Fui elaborando ideias, passei a lembrar alguns autores que escreveram sobre o processo de desenvolvimento cognitivo de aquisição da fala e do canto do bebê; dentre os quais, Howard Gardner (1999), Daniel Stern (1992), Robert Jourdain (1998) e Jean Piaget (1971).
Passei a escrever para organizar as ideias que me vinham sobre o desenvolvimento da fala dos bebês durante a pandemia. Um processo delicado, no qual ele entra em contato com a sua cultura. Aprende a falar ouvindo as ondas sonoras das vozes e também olhando atentamente as expressões faciais dos pais, dos familiares e amigos. Um momento único e fundamental para o desenvolvimento de todos nós.
Em meu artigo “Voz falada e voz cantada: o canto na educação infantil”, publicado no livro A práxis na formação de educadores infantis (Souza & Borges, 2002), faço uma breve reflexão sobre o início da fala dos bebês e, à luz dos autores citados anteriormente, traço uma analogia entre voz falada e voz cantada. Certamente, tal lembrança me ajudou a reviver e a procurar alguns livros que estavam ligeiramente escondidos nesse vai e vem da vida.
No começo do processo de aquisição da fala, a expressão vocal sonora inicial do bebê, o balbucio, está, de certa forma, mais relacionada ao canto do que à fala propriamente dita. Robert Jourdain (1998: 93) relata assim: “aos poucos, surge algo bem diferente da linguagem, algo que o bebê, provavelmente, expressará através de sílabas aleatórias, em vez de palavras. É a canção.”
A criança aprende a falar, assim como adquire outras habilidades, imitando o que ela ouve, observa, percebe, sente. A imitação é um processo básico nesta fase do seu desenvolvimento. Ela, com menos de dois anos, começa a desenvolver a fala, assim como outros domínios, observando e imitando as pessoas próximas.
A criança e seu cérebro em desenvolvimento captam as informações cinestésicas, sonoras e visuais que estão ao seu redor e se estrutura para enfrentar o mundo que está por vir e que nós conhecemos muito bem. Assim, inicia-se o processo de aquisição da linguagem, observando e repetindo aquilo que ouve e também aquilo que vê.
Para aprender a falar, o bebê capta os sons que vêm em sua direção, suas orelhas são radares, e ele já as direciona para a onda sonora que vem ao seu encontro. Simultaneamente, ele fixa seu olhar nos lábios, nos dentes, nas bochechas, nos movimentos da face daqueles que se aproximam dele.
Quando falamos com os bebês, utilizamos aquelas palavras e fonemas carinhosos, pronunciados, quase por instinto, num timbre mais agudo. É como se já estivéssemos pré-programados a fornecer às gerações que chegam um teatro facial sonoro necessário para que possam aprender a falar.
O psiquiatra Daniel Stern (1992), autor do famoso livro O mundo interpessoal do bebê, descreve assim esse mecanismo de aprendizagem da fala:
a própria fala, em uma situação natural, é uma configuração visual, assim como acústica, porque os lábios se movem. A capacidade de imitação aumenta consideravelmente quando os lábios podem ser vistos. Por volta de seis semanas, os bebês tendem a olhar mais estreitamente para os rostos que falam. Além disso, quando o som real produzido está em conflito com os movimentos dos lábios observados, a informação visual predomina em relação à auditiva. Em outras palavras, nós ouvimos aquilo que vemos, não aquilo que é dito. (Stern, 1992, p.44)
Como foi o desenvolvimento dos bebês durante a pandemia? Essa foi minha primeira questão. Justamente no momento em que todo seu sistema nervoso se preparava para receber os estímulos do mundo, a vida parou, congelou, como se o projetor de imagem do cinema tivesse se quebrado. Mesmo nas poucas famílias que conseguiram se retirar para lugares mais distantes, sítios ou casas de praia, os bebês, ainda assim, perderam a oportunidade de entrar em contato com a diversidade de um mundo rico em sons, cenas, gestos, gente de todo tipo.
Minha segunda questão foi mais específica: como se deu o processo de aquisição da fala desses bebês que viveram no isolamento da pandemia, ouvindo sons vindos de faces cobertas de máscaras? Certamente, a qualidade sonora da voz ficou bem comprometida, abafada, sem brilho e impessoal. A articulação da boca e de toda a face, parte importante no processo de aprendizagem, por sua vez, ficou oculta, velada e impedida.
Todos ao redor, pais, irmãos estavam de máscara, inclusive os próprios bebês. E, depois, já no final da pandemia, quando passaram a frequentar as creches, lá também os profissionais usavam máscaras. Não foi uma tarefa fácil para os bebês que nasceram e/ou se desenvolveram durante esse período.
Este artigo não é uma constatação científica, nem mesmo parte de qualquer reflexão mais detalhada, fundada em alguma pesquisa de campo ou algo assim. Trata-se de uma observação, uma “inspiração” sobre fatos que me interessam e estão intimamente ligados ao meu trabalho e à minha vida.
Creio que, durante a pandemia, o processo de aquisição da fala, tão importante para a estruturação do indivíduo ao entrar no mundo, sofreu uma alteração daquilo que era naturalmente previsto. As máscaras modificaram, abafaram e tiraram o brilho, o calor e a sinceridade da pulsão da voz. O som, por sua vez, tinha origem numa face coberta, obstruída, impossibilitada, na qual não era possível perceber as expressões faciais. Acredito que tais fatores possam ter trazido certa dificuldade para o desenvolvimento de algumas crianças.
Há muitos anos venho atendendo, com musicoterapia, a todas as faixas etárias. Em meu atelier, convivo com vários tipos de síndromes e dificuldades. As crianças, que me inspiram, entram felizes quando abro a porta. Algumas já entram pulando, querendo brincar, cantar e experimentar. Ocupam o espaço com olhinhos brilhando, cheios de “vontade de mundo”.
Quase sempre, agacho-me para recebê-las, tento, assim, olhá-las sempre nos olhos. A ideia é ficarmos sintonizados pelo olhar, pelo som que vem em nossa direção e, se possível, hipnotizados pelos movimentos de nossos rostos.
Referências bibliográficas:
GARDNER, Howard. Arte, mente e cérebro. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.
PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
SOUZA, Regina Celia e BORGES, Maria Fernanda. (orgs.) A práxis na formação de educadores infantis. Rio de Janeiro: DP & A, 2002.
STERN, Daniel. O mundo interpessoal do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
————————1 SOUZA, Regina Celia e BORGES, Maria Fernanda. (orgs.) A práxis na formação de educadores infantis. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
2 JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 93.