A Criança Sonora (2002)
José Henrique Nogueira Mestre Educação Musical / Musicoterapeuta
O universo infantil é sempre receptivo aos fenômenos sonoros. A vibração e alegria demonstrada pelas crianças quando estão produzindo som revela que tal atitude é da ordem do prazer e da emoção. Não há muitas dúvidas sobre esta íntima relação da criança de 0 a 6 anos de idade com o som, porém notamos que muito mais poderia ser alcançado nessa afinação criança/música se o próprio professor de turma se aventurasse a conhecer um pouco mais sobre este tema ─ que, vale lembrar, está nos referenciais para a educação infantil ─, lendo e ampliando seus conhecimentos e suas possibilidades de trabalho.
Quando a criança fica à vontade para produzir algum tipo de som, de certa maneira ela está começando a se conscientizar de que tal atitude proporciona interferências e sintonias de caráter intra e interpessoal ou social. Intrapessoal no que se refere à criança estar atenta às informações sonoras captadas, a partir daí construindo e elaborando, através de sinapses e “conexões emocionais”, sua futura habilidade de se relacionar e se comunicar com o mundo. Fazer som nos objetos, ou retirar som das coisas que estavam silenciosas, faz com que as crianças percebam que esta atitude sonora possui uma implicação social: chama a atenção de sua professora, de sua mãe, enfim, todo mundo a olha com satisfação ou com um certo desagrado. Assim, a criança percebe que, ao produzir som, está se envolvendo com outras pessoas, interferindo no ambiente à sua volta, dentro de uma sala de aula ou em casa, mexendo nas panelas da mãe.
Tais sistemas sonoros, embora um pouco difíceis de serem compreendidos, são parte integrante da construção dos sentidos e da identidade da pessoa. John Dewey (1954) foi um dos primeiros a alertar para importância da descoberta sonora pelas crianças, quando disse que “mesmo uma criancinha que esteja interessada em bater em um prato, com uma colher, não está empenhada somente em uma reação de excitação momentânea. O choque entre a colher e o prato produz certo som, que a criancinha acompanha, interessando-se por ele, justamente porque é o resultado de sua pancada na louça, e não um resultado indiferente.”(p.33)
É interessante observar em uma creche as crianças envolvidas com tambores, pandeiros, chocalhos, sucatas diversas na sala de aula. Algumas parecem entender que o som obtido por elas pode interagir com o som do amiguinho ao lado. E também percebem que há pessoas atentas para com sua atitude sonora. Enquanto isso, há aquelas que demoram a sair de um estado de observação intensa e ficam mais tempo vagando entre um instrumento e outro, observando o tambor, chupando o chocalho, até se darem conta de que estão ali reunidos para fazer som. Ou seja, com atenção podemos perceber, já na creche, aquelas crianças que ficam à vontade com a produção sonora.
O educador que atua com crianças de 0 a 2 anos deve se exercitar para aguçar ainda mais a sua percepção, pois estará inserido num ambiente onde haverá muita ação e pouca explicação. Todo movimento, todo som emitido, tudo deve ser observado, e isto só se consegue com um constante exercício de questionamento e atenção para alguns detalhes como: Qual a reação da criança ao produzir um som? Como ela segurou o instrumento? Com carinho? Com raiva? Com timidez? Com desenvoltura?
A música é um conteúdo presente nos referenciais da educação infantil e deve ser trabalhado pelo professor de turma com muita atenção. Quando uma criança, a partir de um gesto, produz um som, ela o faz em conexão com seu esforço corporal. A simultaneidade entre o movimento e o som que chegou aos seus ouvidos é algo muito simples e comum para o adulto, mas para o bebê parece ser um momento mágico. O som, e sua forma etérea de existir, dificulta a sua percepção, seu entendimento e, conseqüentemente, dificulta o trabalho daqueles que não são especialistas. É preciso entender o som como algo palpável e que toca as pessoas. Não somente um toque emocional, mas também físico, concreto; na verdade, são ondas mecânicas sensibilizando o corpo e o cérebro. Faz-se necessário oferecer às crianças pequenas uma maior oportunidade de conhecer a grande variedade de sons que os objetos (timbres) fornecem, para que haja um equilíbrio na supremacia dos estímulos visuais e tácteis que lhe são oferecidos.
A produção sonora das crianças é muito importante, pode ser obtida a partir de qualquer objeto (instrumentos de percussão, sucatas, etc.), e sempre vem acompanhada de um movimento. Observe que cada objeto fornece um movimento “sonoro corporal” diferente. O movimento do braço que alcança e sacode o chocalho preso ao berço, o tambor que é percutido com força, ou um objeto que é lançado distante na expectativa de resposta sonora poucos segundos depois, revelam que som e movimento estão interligados. O bebê ao deslocar um objeto do lugar, a voz da mãe ao acariciar seu filho, um momento de carinho entre pessoas… Muitos momentos da vida vêm acompanhados de uma expressão corporal e sonora.
Nas creches e pré-escolas o contato com a mãe é substituído pelas mãos dos profissionais de educação. Não é tarefa fácil fazer esta necessária transição, sabemos disso, mas acredito que a música possa ajudar a tornar o espaço da sala de aula mais alegre e comunicativo. O desenvolvimento musical/cultural do ser humano está intimamente ligado à faixa etária que vai de 0 a 6 anos. Cabe ao educador que trabalha com essas crianças acreditar que pode trabalhar melhor a música com elas.
O som adormecido toma vida com as atitudes das crianças. Quieto em seu berço, o bebê escuta sons das mais variadas fontes. Compartilha com sua mãe e pessoas afins uma perfeita harmonia entre o som e o movimento. Balbucia, grita, chora, ri e canta. A educação musical inicia-se com pesquisa sonora feita pelos bebês. Cantar mais, ampliar as fontes sonoras e valorizar os gestos das crianças são tarefas para os educadores atentos e pais compromissados com um melhor desenvolvimento de seus filhos.
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Bibliografia
Dewey, John. Vida e Educação. São Paulo: Melhoramentos, 1954.