segunda-feira, 17 de novembro de 2025

A FLOR E O BEIJA-FLOR O som e o perfume que os rodeiam

 A FLOR E O BEIJA-FLOR


O som e o perfume que os rodeiam  





Não sei se começo a escrever um romance ou um relato, tipo um breve artigo de cunho acadêmico. Tenho pensado em perfumes, sons, odores, notas musicais, que consequentemente me conduzem a possibilidade de sair de um mundo musical tradicional, organizado em  harmonias concretas e previsíveis. Estou num momento, onde preciso de outros sons dentro de mim, e acho que sempre foi assim: procurando outros sons. 


Por isso, por estar assim, imaginei o som do bater das asas de um beija-flor e lembrei do seu canto. Fui pesquisar para atualizar minha imaginação e me deparei com artigos e vídeos diversos, revelando a maravilha destas duas formas de manifestações sonoras.


E achei, pelos googles e youtubes da vida, uma grande quantidade  de registros e artigos de asas batendo e produzindo diversos tipos de sons, e maior ainda, é o registro dos cantos dos colibris. Seu canto, na maioria das vezes, é um silvo repleto de pequenos e rápidos estalidos com pausas. Um ou outro beija-flor, possui um canto mais refinado, com alguma breve melodia ou um prenúncio melódico.  


Embora semelhantes, os cantos, principalmente em suas formas, apresentavam pequenas diferenças e detalhes específicos de cada um. Diferenças nas alturas, uns mais agudos e outros ligeiramente mais graves. Na duração também; uns mais longos do que os outros. E por fim, a intensidade seguia as mesmas variações de beija-flor para beija-flor. Uns mais fortes, outros mais fracos e até sons ultrassônicos, inaudíveis ao ouvido humano.


O bater das suas asas produz um som denominado de zumbido. Esses sons também vão variar de acordo com cada espécie de beija-flor. Pois o zumbido também, assim como os cantos, podem ser mais fortes e mais fracos que os outros. Enfim, não quero me alongar nesse universo técnico sonoro, de intensidade, durações e alturas. Pois, como disse, preciso começar a romantizar esse texto, para satisfazer uma ideia, quase uma fantasia, a saber, uma relação amorosa entre a flor e o beija-flor. 

Tudo começou, quando estava fotografando a natureza, e por sorte do acaso Divino, um belo beija-flor passou veloz zumbindo com seu bater asas perto do meu ouvido, e freneticamente parou como uma estátua na frente de uma flor. Era possível escutar zumbido de suas asas, e o som do seu canto alegre característico dos beija-flores. Nesse momento, depois de tirar algumas fotos, percebi que o pequeno pássaro, exibiu o seu ballet sonoro, com seu canto e o zumbido de suas asas para algumas flores. Parecia uma exibição de acasalamento. E certamente era. Por sua vez, em frente ao beija-flor, aparentemente silenciosa a flor, ou as flores deveriam estar exalando seus perfumes, estimuladas pela exibição do beija-flor. Percebi, naquele momento, uma relação amorosa, uma cena de amor. Imaginei que, possivelmente, e por que não, as flores além do perfume, emitiam para o colibri, sons atrativos, sedutores e inaudíveis aos nossos ouvidos. 


A ciência já descobriu que as plantas também emitem sons e que não somos capazes de escutá-los. Esses sons são ultrassônicos, com frequência entre 40 e 80 Hz. A audição humana escuta até aproximadamente 20 Hz. Mas cá estou eu entrando novamente com dados científicos no campo da poesia. Eu avisei no início que poderia ser assim.


As flores, assim como as plantas, emitem odores invisíveis, invisíveis como também são os sons. Tanto um, como outro nos inebriam, trazem lembranças de  momentos que passaram, mas que continuam vivos, presentes em nossa memória. Tenho certeza que o leitor deste breve texto, de agora em diante, ao se deparar com um beija-flor pairando no ar em frente a uma flor, lembrará que ali, naquele breve momento, estará acontecendo efusão de sons e odores. Uma troca de sensações amorosas intensas e delicadas, que acontecem e continuam acontecendo a todo instante sem que nossa percepção consiga detectá-las. A essência de nossa vida se passa nos pequenos detalhes da natureza.


José Henrique Nogueira

Mestre em educação musical

Musicoterapeuta


sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

A criança sonora

A Criança Sonora (2002)

José Henrique Nogueira                                                   Mestre Educação Musical / Musicoterapeuta 

O universo infantil é sempre receptivo aos fenômenos sonoros. A vibração e alegria demonstrada pelas crianças quando estão produzindo som revela que tal atitude é da ordem do prazer e da emoção. Não há muitas dúvidas sobre esta íntima relação da criança de 0 a 6 anos de idade com o som, porém notamos que muito mais poderia ser alcançado nessa afinação criança/música se o próprio professor de turma se aventurasse a conhecer um pouco mais sobre este tema ─ que, vale lembrar, está nos referenciais para a educação infantil ─, lendo e ampliando seus conhecimentos e suas possibilidades de trabalho.

Quando a criança fica à vontade para produzir algum tipo de som, de certa maneira ela está começando a se conscientizar de que tal atitude proporciona interferências e sintonias de caráter intra e interpessoal ou social. Intrapessoal no que se refere à criança estar atenta às informações sonoras captadas, a partir daí construindo e elaborando, através de sinapses e “conexões emocionais”, sua futura habilidade de se relacionar e se comunicar com o mundo. Fazer som nos objetos, ou retirar som das coisas que estavam silenciosas, faz com que as crianças percebam que esta atitude sonora possui uma implicação social: chama a atenção de sua professora, de sua mãe, enfim, todo mundo a olha com satisfação ou com um certo desagrado. Assim, a criança percebe que, ao produzir som, está se envolvendo com outras pessoas, interferindo no ambiente à sua volta, dentro de uma sala de aula ou em casa, mexendo nas panelas da mãe.

Tais sistemas sonoros, embora um pouco difíceis de serem compreendidos, são parte integrante da construção dos sentidos e da identidade da pessoa. John Dewey (1954) foi um dos primeiros a alertar para importância da descoberta sonora pelas crianças, quando disse que “mesmo uma criancinha que esteja interessada em bater em um prato, com uma colher, não está empenhada somente em uma reação de excitação momentânea. O choque entre a colher e o prato produz certo som, que a criancinha acompanha, interessando-se por ele, justamente porque é o resultado de sua pancada na louça, e não um resultado indiferente.”(p.33)

É interessante observar em uma creche as crianças envolvidas com tambores, pandeiros, chocalhos, sucatas diversas na sala de aula. Algumas parecem entender que o som obtido por elas pode interagir com o som do amiguinho ao lado. E também percebem que há pessoas atentas para com sua atitude sonora. Enquanto isso, há aquelas que demoram a sair de um estado de observação intensa e ficam mais tempo vagando entre um instrumento e outro, observando o tambor, chupando o chocalho, até se darem conta de que estão ali reunidos para fazer som. Ou seja, com atenção podemos perceber, já na creche, aquelas crianças que ficam à vontade com a produção sonora.

O educador que atua com crianças de 0 a 2 anos deve se exercitar para aguçar ainda mais a sua percepção, pois estará inserido num ambiente onde haverá muita ação e pouca explicação. Todo movimento, todo som emitido, tudo deve ser observado, e isto só se consegue com um constante exercício de questionamento e atenção para alguns detalhes como: Qual a reação da criança ao produzir um som? Como ela segurou o instrumento? Com carinho? Com raiva? Com timidez? Com desenvoltura?

A música é um conteúdo presente nos referenciais da educação infantil e deve ser trabalhado pelo professor de turma com muita atenção. Quando uma criança, a partir de um gesto, produz um som, ela o faz em conexão com seu esforço corporal. A simultaneidade entre o movimento e o som que chegou aos seus ouvidos é algo muito simples e comum para o adulto, mas para o bebê parece ser um momento mágico. O som, e sua forma etérea de existir, dificulta a sua percepção, seu entendimento e, conseqüentemente, dificulta o trabalho daqueles que não são especialistas. É preciso entender o som como algo palpável e que toca as pessoas. Não somente um toque emocional, mas também físico, concreto; na verdade, são ondas mecânicas sensibilizando o corpo e o cérebro. Faz-se necessário oferecer às crianças pequenas uma maior oportunidade de conhecer a grande variedade de sons que os objetos (timbres) fornecem, para que haja um equilíbrio na supremacia dos estímulos visuais e tácteis que lhe são oferecidos.

A produção sonora das crianças é muito importante, pode ser obtida a partir de qualquer objeto (instrumentos de percussão, sucatas, etc.), e sempre vem acompanhada de um movimento. Observe que cada objeto fornece um movimento “sonoro corporal” diferente. O movimento do braço que alcança e sacode o chocalho preso ao berço, o tambor que é percutido com força, ou um objeto que é lançado distante na expectativa de resposta sonora poucos segundos depois, revelam que som e movimento estão interligados. O bebê ao deslocar um objeto do lugar, a voz da mãe ao acariciar seu filho, um momento de carinho entre pessoas… Muitos momentos da vida vêm acompanhados de uma expressão corporal e sonora.

Nas creches e pré-escolas o contato com a mãe é substituído pelas mãos dos profissionais de educação. Não é tarefa fácil fazer esta necessária transição, sabemos disso, mas acredito que a música possa ajudar a tornar o espaço da sala de aula mais alegre e comunicativo. O desenvolvimento musical/cultural do ser humano está intimamente ligado à faixa etária que vai de 0 a 6 anos. Cabe ao educador que trabalha com essas crianças acreditar que pode trabalhar melhor a música com elas.

O som adormecido toma vida com as atitudes das crianças. Quieto em seu berço, o bebê escuta sons das mais variadas fontes. Compartilha com sua mãe e pessoas afins uma perfeita harmonia entre o som e o movimento. Balbucia, grita, chora, ri e canta. A educação musical inicia-se com pesquisa sonora feita pelos bebês. Cantar mais, ampliar as fontes sonoras e valorizar os gestos das crianças são tarefas para os educadores atentos e pais compromissados com um melhor desenvolvimento de seus filhos.

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Bibliografia

Dewey, John. Vida e Educação. São Paulo: Melhoramentos, 1954.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Tire a máscara, quero aprender a falar.

Tire a máscara, quero aprender a falar.



José Henrique Nogueira. Mestre em Educação Musical/Musicoterapeuta  Pós-graduado em Construtivismo e Educação           
Diretor do Espaço 23 (Música & Educação)


As indicações de tratamento com musicoterapia cresceram muito nesses últimos anos, após a pandemia. Na minha clínica, no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, o Espaço 23, além das tradicionais indicações para Síndrome de Down, Alzheimer, autismo e  outras condições, percebi uma maior procura de pessoas interessadas em conhecer outro tipo de terapia, ou mesmo vivenciar as possibilidades terapêuticas da musicoterapia.

Houve também uma procura acentuada de pais interessados em musicoterapia para seus filhos, em sua maioria crianças de 3 e 4 anos de idade, diagnosticadas dentro do espectro autista. Todas apresentavam dificuldades na linguagem,  além de níveis relativos de hiperatividade e déficit de atenção.

Neste mesmo espaço de tempo, percebi que os veículos de comunicação e as mídias digitais passaram a divulgar um aumento significativo  de casos de crianças com os mesmos sintomas  relatados acima, atribuindo esse aumento aos dois anos de isolamento  vividos durante a pandemia do coronavírus.

Tais notícias e indicações chamaram minha atenção, e passei a refletir sobre os fatos. Fui elaborando ideias, passei a lembrar alguns autores que escreveram sobre o processo de desenvolvimento cognitivo de aquisição da fala e do canto do bebê; dentre os quais, Howard Gardner (1999), Daniel Stern (1992), Robert Jourdain (1998) e Jean Piaget (1971).

Passei a escrever para organizar as ideias que me  vinham sobre o desenvolvimento da fala dos bebês durante a pandemia. Um processo delicado, no qual ele entra em contato com a sua cultura. Aprende a falar ouvindo as ondas sonoras das vozes e também olhando atentamente as expressões faciais dos pais, dos familiares e amigos. Um momento único e fundamental para o desenvolvimento de todos nós.

Em meu artigo “Voz falada e voz cantada: o canto na educação infantil”, publicado no livro A práxis na formação de educadores infantis (Souza & Borges, 2002), faço uma breve reflexão sobre o início da fala dos bebês e, à luz dos autores citados anteriormente, traço uma analogia entre voz falada e voz cantada. Certamente, tal lembrança me ajudou a reviver e a procurar alguns livros que estavam ligeiramente escondidos nesse vai e vem da vida.

No começo do processo de aquisição da fala, a expressão vocal sonora inicial do bebê, o balbucio, está, de certa forma, mais relacionada ao canto do que à fala propriamente dita. Robert Jourdain (1998: 93) relata assim: “aos poucos, surge algo bem diferente da linguagem, algo que o bebê, provavelmente, expressará através de sílabas aleatórias, em vez de palavras. É a canção.”

A criança aprende a falar, assim como adquire outras habilidades,  imitando o que ela ouve, observa, percebe, sente. A imitação é um processo básico nesta fase do seu desenvolvimento. Ela, com menos de dois anos, começa a desenvolver a fala, assim como outros domínios, observando e imitando as pessoas próximas.

A criança e seu cérebro em desenvolvimento captam as informações cinestésicas, sonoras e visuais que estão ao seu redor e se estrutura para enfrentar o mundo que está por vir e que nós conhecemos muito bem. Assim, inicia-se o processo de aquisição da linguagem, observando e repetindo aquilo que ouve e também aquilo que vê.

Para aprender a falar, o bebê capta os sons que vêm em sua direção, suas orelhas são radares, e ele já as direciona para a onda sonora que vem ao seu encontro. Simultaneamente, ele fixa seu olhar nos lábios, nos dentes, nas bochechas, nos movimentos da face daqueles que se aproximam dele.

  Quando falamos com os bebês, utilizamos aquelas palavras e fonemas carinhosos, pronunciados, quase por instinto, num timbre mais agudo. É como se já estivéssemos pré-programados a fornecer às gerações que chegam um teatro facial sonoro necessário para que possam aprender a falar.

O psiquiatra Daniel Stern (1992), autor do famoso livro O mundo interpessoal do bebê, descreve assim esse mecanismo de aprendizagem da fala: 

a própria fala, em uma situação natural, é uma configuração visual, assim   como acústica, porque os lábios se movem. A capacidade de imitação aumenta consideravelmente quando os lábios podem ser vistos. Por volta de seis semanas, os bebês tendem a olhar mais estreitamente para os rostos que falam. Além disso, quando o som real produzido está em conflito com os movimentos dos lábios observados, a informação visual predomina em relação à auditiva. Em outras palavras, nós ouvimos aquilo que vemos, não aquilo que é dito. (Stern, 1992, p.44)

 

Como foi o desenvolvimento dos bebês durante a pandemia? Essa foi minha primeira questão. Justamente no momento em que todo seu sistema nervoso se preparava para receber os estímulos do mundo, a vida parou, congelou, como se o projetor de imagem do cinema tivesse se quebrado. Mesmo nas poucas famílias que conseguiram se retirar para lugares mais distantes, sítios ou casas de praia, os bebês, ainda assim, perderam a oportunidade de entrar em contato com a diversidade de um mundo rico em sons, cenas, gestos, gente de todo tipo.

Minha segunda questão foi mais específica: como se deu o processo de aquisição da fala desses bebês que viveram no isolamento da pandemia, ouvindo sons vindos de faces cobertas de máscaras? Certamente, a qualidade sonora da voz ficou bem comprometida, abafada, sem brilho e impessoal. A articulação da boca e de toda a face, parte importante no processo de aprendizagem, por sua vez, ficou oculta, velada e impedida.

Todos ao redor, pais, irmãos estavam de máscara, inclusive os próprios bebês. E, depois, já no final da pandemia, quando passaram a frequentar as creches, lá também os profissionais usavam máscaras. Não foi uma tarefa fácil para os bebês que nasceram e/ou se desenvolveram durante esse período.

Este artigo não é uma constatação científica, nem mesmo parte de qualquer reflexão mais detalhada, fundada em alguma pesquisa de campo ou algo assim. Trata-se de uma observação, uma “inspiração” sobre fatos que me interessam e estão intimamente ligados ao meu trabalho e à minha vida.

Creio que, durante a pandemia, o processo de aquisição da fala, tão importante para a estruturação do indivíduo ao entrar no mundo, sofreu uma alteração daquilo que era naturalmente previsto. As máscaras modificaram, abafaram e tiraram o brilho, o calor e a sinceridade da pulsão da voz. O som, por sua vez, tinha origem numa face coberta, obstruída, impossibilitada, na qual não era possível perceber as expressões faciais. Acredito que tais fatores possam ter trazido certa dificuldade para o desenvolvimento de algumas crianças.

Há muitos anos venho atendendo, com musicoterapia, a todas as faixas etárias. Em meu atelier, convivo com vários tipos de síndromes e dificuldades. As crianças, que me inspiram, entram felizes quando abro a porta. Algumas já entram pulando, querendo brincar, cantar e experimentar. Ocupam o espaço com olhinhos brilhando, cheios de “vontade de mundo”.

Quase sempre, agacho-me para recebê-las, tento, assim, olhá-las sempre nos olhos. A ideia é ficarmos sintonizados pelo olhar, pelo som que vem em nossa direção e, se possível, hipnotizados pelos movimentos de nossos rostos.


Referências bibliográficas:

GARDNER, Howard. Arte, mente e cérebro. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

SOUZA, Regina Celia e BORGES, Maria Fernanda. (orgs.) A práxis na formação de educadores infantis. Rio de Janeiro: DP & A, 2002.


STERN, Daniel. O mundo interpessoal do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

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 1 SOUZA, Regina Celia e BORGES, Maria Fernanda. (orgs.) A práxis na formação de educadores infantis. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.             

2  JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 93.         

sábado, 19 de agosto de 2023

NÃO QUERO TOCAR! EU QUERO DESENHAR!

 NÃO QUERO TOCAR! EU QUERO DESENHAR!

Os pais que tentaram transferir seus desejos musicais para a filha.

José Henrique Nogueira
Musicoterapeuta 
Mestre Educação Musical
Pós Graduado em Construtivismo e Educação
Diretor do Espaço Musical 23-Rio de Janeiro

Não me lembro direito o dia que aconteceu, afinal, depois de 12 anos a frente do Espaço Musical 23, acolhi, ouvi e trabalhei diversos desejos, passagens, frustrações musicais que sempre começam com uma boa e necessária conversa. E não foi diferente neste breve caso que vou relatar agora, não fosse o fato de que a menina que marcou o horário para conversar e conhecer o Espaço 23, lá esteve conforme combinado, entrou, trocamos algumas ideias, tocou alguns instrumentos, se despediu e nunca mais voltou. Mas apesar desse rápido encontro, tenho certeza que o trabalho foi muito bem realizado. Uma das melhores aulas da minha vida. Aula boa é aquela que o professor também aprende, se enriquece com o sofrimento e alegrias dos seus alunos, com qualquer faixa etária. Foi assim que aconteceu.

Ela tinha apenas 16 anos e foi ao Espaço 23 depois de um telefonema de sua mãe marcando comigo para que sua filha viesse conversar e conhecer o meu atelier e a proposta. Soube do meu trabalho por intermédio de amigos. Cheguei a perguntar pra mãe se em casa alguém tocava algum tipo de instrumento. Porém a negativa apressada, com certa ansiedade, de certa forma me cortando, na hora me pareceu apenas a pressa dos dias atuais. Mas tal desconforto, sobre minha pergunta: “- em casa alguém toca um instrumento musical?”, só pude entender e decifrar no final desse encontro.

 Chegou na hora marcada. Eram 15 horas aproximadamente do mês de Dezembro, o sol estava queimando lá fora e ao entrar percebeu que o ar refrigerado estava funcionando muito bem. Sentou-se na cadeira que eu havia deixado já preparada para ela, o som ambiente escolhido foi Beatles instrumental. 

Sentou-se, e como sempre, começo perguntando se mora perto do estudio, se teve dificuldade de encontrar (meu estúdio é ligeiramente escondido), onde estuda, e aos poucos vou adentrando no tema que a levou a me procurar. A lembrar: a aprendizagem de um instrumento musical; violão ou teclado, pelo menos foi assim por telefone que sua mãe me falou. Aos poucos a conversa já girava em torno da música. Grupos, cantores e Djs que permeiam a juventude. Como recebo muitos adolescentes consigo trocar uma conversa sobre a cultura musical desta faixa etária com certa desenvoltura. Faltava entrar no tema em questão: a aprendizagem de um instrumento musical.

  • Pois então professor, (disse ela) na verdade estou aqui porque minha mãe e meu pai querem muito que eu aprenda um instrumento. 

Até então tudo certo. São inúmeros casos de procura no Espaço 23 para aprendizagem e prática de algum instrumento. De certa forma, como o espaço possibilita o acesso a vários instrumentos, para que o aluno possa entrar em contato, achava até então tudo iria correr tranqüilo não fosse o fato que ela assim que manuseou o violão, depois foi ao teclado e tocou a escala de Dó e por fim foi batería fazer um som livre em suas peças; em todos esses instrumentos ela tocou com muita cerimônia e desconforto. Logo percebi que teríamos um trabalho minucioso e longo pela frente. Nos sentamos e quando eu ia retomar um assunto, ela se antecipou e comentou assim:

  • Professor você já deve ter percebido que estou aqui mais por desejo dos meu país do que o meu próprio. Não tomei a iniciativa, não queria, nunca encostei nos instrumentos dos meus pais que estão guardados lá em casa.

Nesse momento surgia uma outra menina em minha frente. Outras informações estavam surgindo “instrumentos em casa”. Me organizei e me posicionei para deixá-la ao máximo à vontade para ela poder elaborar melhor sua fala.
  • Ah…! Então eles já tocaram, E ainda guardam seus instrumentos em casa. Comentei.
  • Dois instrumentos! Um teclado da minha mãe da época que tocava e o violão do meu pai que também antes de casar ter filhos. Entre eles eu. Tenho um irmão menor professor.
  • Certo, certo, continue 
  • Então. Eu fico assim sem saber o que fazer. Pensa só: Se tocar um instrumentos é tão bom assim, porque então pararam? Porque então eles não vieram para cá no meu lugar. Até entendo o valor da música na vida das pessoas. No colégio onde estudei tocava super bem flauta-doce, mas gostava mais da aula de arte. Gosto mesmo de desenhar. Ficar quietinha, em silêncio rabiscando meus cadernos,

Acho que o leitor já deve ter entendido que o encontro está chegando ao seu final. Os pais não haviam dito nada sobre seus instrumentos, ficando agora claro a pressa da mãe em desconversar este assunto, lá em minha conversa inicial. É muito comum o pai ou a mãe interromperem suas atividades musicais assim que casam. Vários motivos são alegados: falta de tempo, necessidade de trabalho, a insatisfação do(a) companheiro(a). Mas casos assim do casal cessar suas atividades musicais é mais raro. Fico pensando: a música suscita alguns sentimentos e fantasias que muitas das vezes podem ir de encontro a aquela proposta nova de união. Um pacto silencioso que pode trazer questões delicadas ao futuro do casal. Não entrevistei o casal, apenas estou costurando sobre inúmeros casos que aqui atendo de adultos que interromperam suas atividades musicais e que me procuram para reiniciar o contato com seu instrumento. O contato com lembranças prazerosas, com a alegria, fantasias, com o mundo subjetivo que a música oferece pode incomodar. Retomar esses sentimentos através da música pode suscitar, remexer sentimentos que muitas das vezes foram deliberadamente reprimidos, porém inconscientemente guardados com inúmeros afetos e desejos. O caso desses pais, que cobraram da filha, impuseram um desejo que não era dela, de certa forma transferiram para a filha uma parcela de um mundo recalcado, silencioso e velado para o casal, na esperança de aliviar um desconforto de ambos.

Eu não entrei em contato com os pais depois deste encontro. Enviei uma mensagem de texto relatando um pouco do meu encontro com a filha, comentei sobre as observações maduras e sinceras da filha acerca do seu “não desejo” pela música. Achei necessário expor, de forma breve, a reflexão da filha sobre os instrumentos musicais parados em casa, porém não entrei nos detalhes, nem tampouco sugeri que voltassem a tocar.  Agradeci. Me coloquei ao dispor da família. Me despedi. Nunca mais soube deles. Espero que os pais estejam tocando a vida. E a menina...desenhando suas fantasias e desejos. 

Um passeio cheio de sons.

 🌿 Um passeio cheio de sons.


Enquanto o sol ofuscava seu olhar, no outro hemisfério a água fria banhava seus pés.

Perdida e feliz entre tantas sensações, seguia apenas seguindo, esquecida de seus sentimentos que ainda transbordavam seu coração. 

Caminhava saboreando o que a vida lhe dava de presente, sabendo que ali na beira d’água, ela era feliz ao som das conchas quebradas que iam e voltavam na areia.


Aproveitando o descuido de suas aflições que haviam desaparecido por alguns instantes, deixou-se encantar pelas gaivotas loucas que brincavam de mergulhar no mar. 

O som branco das ondas que quebravam distantes da praia, à fizeram sentar para escutar com acuidade este ruído que lhe parecia silencioso. 

Assim ficou por alguns longos segundos...Inesperadamente seus olhos fecharam; só voltaram a abrir quando uma fina camada de água fria alcançou sua pele branca.

Embora abertos, seus olhos demoraram a perceber que ao seu redor crianças gritavam de alegria, e corriam em direção ao mar como se o vissem sempre pela primeira vez.

Levantou e partiu levando com ela o som de suas dúvidas que persistiam voltar.


José Henrique Nogueira

Mestre em Educação Musical

Musicoterapeuta

Compositor

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Reflexões poética/musicais: Música e Alzheimer.



 José Henrique Nogueira


Há muitos anos venho trabalhando “Música e Alzheimer” aqui no meu ateliê, o Espaço 23. Ao longo desse tempo, venho fazendo anotações sobre minha prática. Fatos interessantes que acontecem durante nossos encontros, ideias para atividades futuras, enfim, anotações que me auxiliam em meus planejamentos.

Porém, em paralelo a essas anotações diretamente ligadas aos atendimentos de musicoterapia, por algum bom motivo, elaborei reflexões um pouco mais profundas e pessoais, que aqui denominei de "poéticas/musicais", que ajudaram a me revigorar e me motivar durante esse trabalho tão bonito, porém, muito intenso e complexo. Ao todo, são sete (Ritornello; Silêncio; Memória; Expressão; Estética; Música e Dança) pequenos textos com temas diferentes, que estão diretamente relacionados e vivenciados na minha prática.

 

                                       

Ritornello

 

Nada mais torturante, ou interessante, que a repetição contínua de um som em intervalos regulares e contínuos num longo período de tempo. A repetição inebria, mas também pode calcificar as possibilidades musicais. O músico vive a repetição para chegar ao virtuose. O bailarino repete centenas de vezes o mínimo gesto em busca da perfeição. É viver próximo da angústia do ritornello sem fim. Esse “fenômeno” também acontece em meus encontros musicais com pacientes com Alzheimer. Muitas vezes vivemos a repetição de uma melodia, de um ritmo. Tento sair do círculo improvisando sobre ele. Ornamento e crio procurando uma saída. Vivemos um eterno retorno à tônica na continuidade de um arpejo. Alterno a posição da tônica, o que de certa forma me traz uma sensação prazerosa. Outro tom, outro mundo, outra viagem. Interfiro sobre os arpejos com improvisos, embora não saiba bem ao certo a que servem, se estão propiciando algum prazer. Se estão apenas satisfazendo meu incômodo. Arpejos, mudanças de tônicas e improvisos. Improvisos, mudanças de tônicas e arpejos. Mudanças de tônicas, arpejos e improvisos. Sem perceber, estamos em círculo. A vida é circular, espiral sem fim.

 

                                                    

Silêncio

 

O silêncio é na verdade quem rege nossa relação. A sintonia entre o indizível e o impensável. A fina camada que sustenta nossa parceria. Os olhos expressam nossa melodia com possibilidades de chuva e de tempestade. Não sei por que o silêncio entre nossas palavras não ditas parece tão revelador. No contínuo fervor do trabalho, não percebo o quanto recebo. Muitas das vezes não paro para refletir: sigo com a música da mesma forma como se estivesse respirando, apenas respirando. Acompanho o adormecer lento de sua fala, dos gestos, dos cantos e dos movimentos. Quando paro, reflito sobre meus excessos, sobre minha ansiedade. Do olhar, retiro a alegria, a certeza e a certeza de seguir em silêncio. Silêncio que também é música.

 


Memória

 

Não lembro mais quantos encontros e alegrias tivemos. Depois de tantos minutos juntos com a música, parece que escrevemos uma sinfonia, ou melhor, uma ópera. Tudo começou com uma retrospectiva sobre o passado, uma entrevista buscando peças para organizar os quebra-cabeças durante os atendimentos. A memória eram os nomes, as palavras, letras das músicas e melodias. Fatos marcantes vêm à tona, emergem, respiram e voltam a mergulhar. Faço uma analogia com os cachalotes, que, depois de cumprirem seu tempo na superfície do oceano, mergulham verticalmente nas profundezas do mar, numa atitude aparentemente inexplicável. Assim é o vai e vem e vai da memória, que parece acontecer no Alzheimer. As lembranças musicais precisam ser rapidamente resgatadas para fazerem parte da relação. Emociona saber que a música se mantém presente mesmo quando a fala se vai. Ela, a música, e tudo o mais que possa ser entendido como música são expressões sutis que os pacientes nos emitem, buscando no tênue fio que ainda existe de sadio entre nós. É importante criar um novo sistema de radar para interceptar as nuances das respostas da memória. A música está no olhar, na respiração, na impossibilidade, no silêncio.

 


Estética

 

Nunca segui uma linha, uma tendência, um gênero musical como se fosse algo que representasse minha personalidade. Minha estética sempre esteve escorada em alguns parâmetros, como coerência, poesia, acabamento e clareza. Na verdade sempre vivi em momentos: momentos italianos, momentos ingleses, momentos baianos, momento cearenses, momentos blues, momentos clássicos, momentos ruídos e silêncios, sempre fui plural e também muito curioso. Talvez essa colcha de retalhos, esse ouvido multifacetado tenha me facilitado entender e conviver com os gostos alheios sem nenhum crivo estético. Aceito a música que vem do outro sem nenhum desgaste, pois sei que será com ela e através dela que faremos nossas trocas e tentaremos entrar em sintonia. O canto desafinado me interessa, as melodias mal tocadas trazem informações, o ritmo inconstante ou repetitivo faz parte dessa festa, o grito, o grunhido, o gutural são necessários e de difíceis leituras, principalmente pelo estranhamento estético. Para trabalhar com musicoterapia, para se utilizar a música com finalidade terapêutica é necessário aventurar-se em várias direções sonoras e musicais. Embarcar numa viagem, sem medo, muitas vezes sem volta.

 


Música

 

Numa situação terapêutica, é preciso sondar, revirar, procurar como a música perpassa a história da pessoa. Camuflada na impossibilidade de ser cantada ou tocada, faz-se uso do apoio familiar para traçarmos um histórico musical. A música permeia a relação, cria o elo entre as duas partes. Conhecer a história musical, os compositores e músicos que encantaram a outra pessoa significa compartilhar suas emoções, vibrar com seus momentos felizes, silenciar com suas perdas, respeitar seus mitos. Significa redescobrir a tenra infância, perpassar a meninice, emaranhar-se na adolescência, emocionar-se quando adulto e refletir em melodias silenciosas na velhice. Quando a melodia começa a ficar repleta de pausas é o momento de observar os pequenos gestos, os pequenos detalhes: seja um dedo mínimo se movendo ritmicamente, uma fração melódica vinda dos lábios, um olhar ligeiro que ainda brilha, um suspiro profundo de prazer. As musas, muito mais do que as técnicas, saem e sobrevoam nossos encontros. Música é pura emoção.

 


Expressão

 

Assustado fiquei, quando, ainda pequeno, vi passar um garrafeiro com seu burro sem rabo em Niterói. Me lembro, embora lembranças pareçam sonhos, de que me escondi por detrás das pernas compridas do meu pai. Ele, percebendo meu desconforto, imediatamente se agachou e olhando nos meus olhos, disse: - Escute, filho, ele está assoviando... quem assovia pela vida tem um coração bom. Nunca mais esqueci esse ensinamento e, dali por diante, esse fato acabou me servindo para nortear e minuciar minha atenção às expressões musicais das pessoas. É assim a vida, são fatos, muitas vezes da infância, que acabam por dirigir nossos interesses e desejos. Gosto de colocar música na vida das pessoas. Gosto de observar os detalhes, as manias sonoras e musicais que cada um carrega em suas atitudes. Algumas personalidades são de poucas notas, um bater de pé, um dedo batendo na mesa, um balançar de cabeça, um fechar de olhos silenciosos. Outras são ruidosas, passam marcando seu território com músicas e sons, demonstrando maior intimidade com essa forma de expressão. É com essa atenção que vou seguindo os resquícios expressivos que vão sendo apresentados pelos portadores de Alzheimer. O declínio evidente das manifestações expressivas não significa que devemos deixar de trabalhá-las e de incentivá-las, de continuarmos acreditando na influência da música na misteriosa fisiologia cerebral que nos mantém vivos.

 


Dança

 

Quem veio primeiro, o som ou o movimento? O gesto, o passo, o pulo, a queda, o atirar-se no espaço sugerem sons ou são apenas movimentos silenciosos? Inspiradora essa relação do som com o movimento, porém quando saímos da esfera subjetiva e partimos para a prática da dança, as coisas mudam de figura. É muito difícil soltar as amarras do corpo. O outro que nos olha e que não existe parece proibir, cercear as possibilidades corporais no espaço. Numa relação terapêutica musical, há um momento em que o som por si só não basta, ele pede o gesto, o movimento e convida a dançar. E assim, dançamos. Algumas vezes ao som de suas músicas prediletas e outras sugeridas por mim. Escolho aquelas que criam um ambiente favorável para que este corpo que carrego livre-se dos preconceitos e das impossibilidades e interaja com o espírito feminino que pede para dançar. Terpsícore, na mitologia grega, a musa da dança, gosta de atenção, galanteios, elogios, carinho, alegria e principalmente de diversão. Minhas alunas com Alzheimer certamente continuarão gostando de dançar enquanto puderem. E mesmo depois que a imobilidade do mínimo gesto se instaurar, o som, ainda presente, poderá trazer as lembranças do balé, do arrasta-pé, da valsa, dos bailes da vida. Trabalhamos não para resgatar o que se perdeu, investimos sobre o que existe de saudável percebido ou imaginado. É preciso e imprescindível dançar!