domingo, 13 de fevereiro de 2022

A paisagem sonora : Cosme Velho à Laranjeiras registrado numa bicicleta

 

 Paisagem Sonora

 Cosme Velho à Laranjeiras registrado numa bicicleta

(Artigo da Publicação "Escola em Transe" - UFF)

4ª PUBLICAÇÃO - 2021/2 | publicacaoemtrase (escolaemtranse2020.wixsite.com)

O link para assistir o vídeo da pedalada: https://youtu.be/PVnNMFWgv1s





                                                                                      

Eram 8:30 de uma manhã de segunda-feira de carnaval no ano de 2021. Um pequeno trajeto de 1,5 Km, um recorte no tempo e espaço no bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro percorrido numa bicicleta, começando na Rua Smith de Vasconcelos e terminando na Rua Sebastião de Lacerda, registrando numa câmera de celular acoplada ao guidom informações visuais e sonoras para a reflexão que pretendo encaminhar a seguir. O objetivo é de ampliar a discussão sobre conceitos como Paisagem Sonora e Ecologia Sonora e observar como a arquitetura e a estrutura urbana revelada neste breve espaço geográfico, podem trazer informações que inspirem reflexões urbanísticas, ecológicas, musicais e poéticas. A forma mecânica, repetitiva na qual percorremos nossos trajetos nos centros urbanos, nos impede de refletir sobre ele. Enfim, um curto trajeto, um recorte no cotidiano de um espaço urbano multifacetado cujo vídeo pode ser assistido no “link no final desse texto”.     
                                                                                              
                            Árvores: anteparos sonoros

Assistindo o vídeo podemos perceber muitos detalhes, certamente muitos outros surgirão sob o olhar e a audição de cada um que o assistir. Por sua vez vou me deter inicialmente na quantidade de árvores que ainda habitam no percurso registrado por mim. São inúmeras árvores de tamanhos diferentes, de tonalidades de verdes igualmente distintas e de espécies diferentes. Amendoeiras, palmeiras, pau-brasil, oitizeiro entre muitas outras que convivem com a paisagem do bairro das Laranjeiras.  As árvores além de refrescar e embelezar a cidade, servem como abafadores do ruído urbano. Suas copas, seus troncos, servem de anteparos ao constante fluxo ruidoso produzido pelo trânsito intenso das ruas. O vento em suas folhas produz sons de timbres diversos que amenizam e trazem bem estar, nos remetendo, sem que percebamos, a um contato sonoro mais primitivo. O som das árvores e todos os outros sons que ela abriga também se perdem quando ela é cortada. Certamente essas árvores que produzem sons com seus galhos e folhas, também trazem pássaros, cigarras, micos, que por sua vez igualmente participam sonoramente da paisagem sonora desse percurso. Como um rio ruidoso, caudaloso de forte correnteza, não encontrando resistência o ruido da cidade segue seu curso invisível e por incrível que pareça, sem ser percebido pela audição. O olhar e seu imperioso sentido da visão ainda rege as normas da ecologia.

 

“No passado havia santuários emudecidos onde qualquer pessoa que sofresse de fadiga sonora poderia refugiar-se para recompor sua psique. Poderia ser nas florestas, à beira-mar ou numa encosta coberta de neve durante o inverno.”(Schafer,R. Murray, 1977)

 

A arquitetura do percurso

Neste percurso registrado pelo vídeo, é importante relatar sobre as construções que estão visíveis no enquadramento da câmera do celular. É possível observar a diversidade de estilos e épocas nos traços dos prédios, fachadas, muros e outras estruturas que revelam uma das características deste bairro das laranjeiras, o de abrigar uma paisagem arquitetônica multifacetada. Assim que a câmera começa a registrar a Rua Cosme Velho; aos 0:27 min surge a Casa da Embaixada da Romênia, em seguida descendo a esquerda a Igreja São Judas Tadeu, um pouco mais a diante, uma construção verde o Colégio São Vicente de Paulo, aos 1:07 min podemos observar o magnífico Colégio Sion, ainda a esquerda aos 1:28 o famoso complexo predial Pires de Almeida, seguindo um pouco mais o muro amarelo do recuado e maravilhoso Edifício Monte, logo em seguida e ainda a direita a Igreja Cristo Redentor, aos 2:39 min é possível avistar o chafariz em forma de concha da Praça Ben Gurion e por fim ao entrar na Rua Sebastião de Lacerda aos 3:25 min é possível observar as 4 casas gêmeas à direita do vídeo. Muitas outras construções importantes não foram registradas pela câmera, mas que fazem do Bairro das Laranjeiras um espaço fértil para quem gosta de apreciar e estudar arquitetura.

 

Paisagem Urbana

Dizem que antes da inauguração do Túnel Rebouças no dia 3 de outubro de 1967 essa região era bem mais tranquila e com um perfil urbano coerente com as características de um bairro residencial com muitas casas, situado em um vale cercado de montanhas com pouca circulação de carros e com vendedores gritando seus pregões pelas ruas. Ainda é possível perceber no asfalto os trilhos dos bondes que circulavam por ali, assim como vendedores de vassouras, de pão em suas bicicletas, e com muita sorte, vendedores com seus cachos de caranguejos equilibrados, o amolador de facas faz tempo que não o ouço. Mas durante o trajeto algumas coisas chamam a atenção. As ruas alternam de largura, assim como as calçadas, enquanto as placas de aviso e comunicação para os motoristas que parecem possuir um design ultrapassado se escondem da visão entre fios e árvores. A ciclofaixa embora demarcada no asfalto ainda gera certa insegurança. Transeuntes passando, chegando, atravessando as ruas e calçadas numa manhã de segunda-feira. Ambulantes, ônibus, carros, caminhões, bicicletas perpassando pelo trajeto anunciando o começo da semana. As ciclovias embora deterioradas e eventualmente invadidas funcionam bem. O perfil urbanístico do trajeto apresenta uma diversidade que abriga o crescimento natural e o planejado. É possível observar resquícios das estruturas do passado e do presente tentando conviver. A impressão que dá é que o fluxo de urbanização que o túnel ofereceu não coube na estrutura tradicional do bairro que ainda resiste. Um bom projeto acústico para a cidade certamente é aquele que saberia manter e até resgatar os sons naturais e originários de um espaço urbano e consiga mixá-los aos sons e ruídos da contemporaneidade.

 

“O projetista acústico incita a sociedade a ouvir novamente modelos de paisagens sonoras lindamente modulados e equilibrados, tal como ocorre, hoje, nas grandes composições musicais. O esforço final é aprender como os sons podem ser reorganizados, de maneira que todos os tipos possíveis possam ser - uma arte chamada orquestração.”(Schafer, R. Murray, 1991)

 

 

 

Paisagem Sonora

A paisagem sonora para melhor ser observada e percebida se faz fechando os olhos para apreciação do vídeo que gerou inspiração para esse texto. Diversos tipos de sons podem ser ouvidos durante o trajeto. Dois deles sempre estarão presentes ora mais, ora menos durante todo o percurso. Um deles os ruídos da minha bike: o som da roda girando, da estrutura do pedal, corrente e coroas, os freios. O outro também sempre presente o fluxo ruidoso e constante da cidade, que é constituído de inúmeros sons tais como: ar refrigerados, ônibus, carros, motos, gritos, falas, buzinas, rádios ligados, entre muitos outros sons urbanos.

Este trajeto foi feito por uma bicicleta cortando e enfrentando o atrito do elemento ar que é composto diversos tipos de gazes, que por sua vez propagam o som. Ondas sonoras invisíveis aos nossos olhos estão se propagando em diversas amplitudes, entrecortando-se em diversas direções. Imagine várias pedras de diversos tamanhos sendo atiradas ao acaso e simultaneamente num lago sereno ou num remanso de um rio produzindo lindos desenhos circulares de diâmetro e de duração diferente na superfície. No ar, está sempre acontecendo a mesma coisa através de pulsos energéticos oriundos de alguma perturbação física que gere esta oscilação e não faltam fontes sonoras numa cidade. Acho, mesmo para os mais especialistas e acadêmicos que estudam e se interessam pelo o fenômeno sonoro, vale sempre “lembrar que um copo vazio está cheio de ar” (Gilberto Gil).

A inspiração poética e musical está ligada com o ambiente sonoro que cerca os compositores. Vários compositores de um passado mais silencioso se inspiraram em temas e motivos da natureza em suas obras. O bairro das laranjeiras abriga uma forte tradição de artistas, poetas, filósofos e compositores. O cuidado com os projetos acústicos urbanos também beneficia a manutenção de um pensamento criativo e crítico do bairro.

Imaginemos agora que o percurso fosse um rio. Um rio sonoro que começou a ser registrado por um dos seus afluentes; calmo, tranquilo, com pouca massa sonora, repleta de sons naturais e de prenúncios de silêncio. Este afluente, no caso a rua Smith de Vasconcelos, que desce lentamente com seus sons de maritacas, com seus poucos ruídos matinais e pitadas de silêncio. Aos poucos este afluente sonoro vai se encontrando com um grande fluxo sonoro ruidoso que desce morro abaixo. No chão, um asfalto ideal para propagar o veio ruidoso, que, se fosse poroso, menos compactado, talvez reduzisse a propagação contínua desse rio sonoro cuja sua intensidade está apenas começando como pode ser escutado no vídeo.

A rua Cosme Velho possui em suas encostas uma arquitetura com casas e prédios recuados que permitem que as ondas sonoras se espalhem diminuindo a força do fluxo ruidoso, mas que, por sua vez continua implacavelmente crescendo conforme nos aproximamos da altura rua General Glicério.

Já na Rua das Laranjeiras podemos observar que os prédios começam a ficar mais altos e colados uns aos outros. A essa altura os ruídos seguem seu fluxo com mais intensidade. Literalmente canalizados pela estrutura de cimento compactada dos prédios construídos colados uns aos outros, todos a próximos a via principal, a massa sonora repleta de ruídos parece seguir em forte velocidade e intensidade. Imperiosa, essa corrente sonora, atrai para si como uma força eletromagnética todos os ruídos que estão próximos e os transforma numa massa caudalosa sem anteparos que possam reduzir sua força.

O percurso deste rio sonoro, por ironia do destino segue o mesmo curso do rio Carioca que está abaixo do asfalto. O asfalto impermeável separa os dois. Por baixo um rio importante para a história Rio de Janeiro, seu nome batiza aos que aqui nascem e vivem, segue escondido, enterrado numa cripta asfáltica. E por cima uma corrente sonora ruidosa, turbulenta, invisível que nos atravessa sem nos darmos conta, que talvez nos influencie à esquecer quem somos e para onde vamos,  um ruído constante e hipnótico

É interessante perceber que ao entrar no afluente sonoro à direita na rua Sebastião de Lacerda, final deste percurso, o som imediatamente perde sua intensidade. Observa-se logo o esplendor arquitetônico das quatro casas gêmeas na beira da rua, praticamente sem muros, parecendo ser as guardiãs de uma romântica e bucólica paisagem sonora de outrora. O áudio do vídeo, revela claramente a saída do fluxo da torrente sonora da rua das Laranjeiras entrando como em um remanso, é algo instantâneo, volta-se a escutar o som da bike e de outros eventos esparsos, percebe-se a presença de algo como uma massa silenciosa. Um bolsão de ar mais silencioso, um remanso sonoro, à espreita, não conseguindo penetrar e no grande rio de massa sonora contínua seguindo seu curso imperioso em direção ao Largo do Machado.

“O progresso das civilizações criará mais ruido e não menos, disso estamos certos.Daqui a um século, quando o homem quiser fugir para um local silencioso, pode ser que não tenha sobrado nenhum lugar para onde ir.”(Schafer,R. Murray, 1977)

 

1 Educador Musical, Musicoterapeuta e Compositor. Mestrado em Educação Musical (CBM), Graduado em Musicoterapia (CBM), Pós-graduado (s.l) em Construtivismo e Educação (FLACSO). Extensão “Hands on music” Orff Socity (UK) – Atualmente dirige e coordena as atividades do Espaço Musical 23 no Rio de Janeiro. 

Link do vídeo: (https://youtu.be/PVnNMFWgv1s)   https://youtu.be/PVnNMFWgv1s

Link para ler todas as publicações: https://escolaemtranse2020.wixsite.com/meusite/c%C3%B3pia-escola-em-transe-3%C2%AA-publica%C3%A7%C3%A3o 

Bibliografia

Schafer, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista,1991. 

Schafer, R. Murray. São Paulo: Editora UNESP, 2001

Krause, Bernie. A grande orquestra da natureza. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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