Paisagem Sonora
Cosme Velho à Laranjeiras registrado numa bicicleta
(Artigo da Publicação "Escola em Transe" - UFF)
4ª PUBLICAÇÃO - 2021/2 | publicacaoemtrase (escolaemtranse2020.wixsite.com)
O link para assistir o vídeo da pedalada: https://youtu.be/PVnNMFWgv1s
Assistindo o vídeo
podemos perceber muitos detalhes, certamente muitos outros surgirão sob o olhar
e a audição de cada um que o assistir. Por sua vez vou me deter inicialmente na
quantidade de árvores que ainda habitam no percurso registrado por mim. São inúmeras
árvores de tamanhos diferentes, de tonalidades de verdes igualmente distintas e
de espécies diferentes. Amendoeiras, palmeiras, pau-brasil, oitizeiro entre
muitas outras que convivem com a paisagem do bairro das Laranjeiras. As árvores além de refrescar e embelezar a
cidade, servem como abafadores do ruído urbano. Suas copas, seus troncos,
servem de anteparos ao constante fluxo ruidoso produzido pelo trânsito intenso
das ruas. O vento em suas folhas produz sons de timbres diversos que amenizam e
trazem bem estar, nos remetendo, sem que percebamos, a um contato sonoro mais
primitivo. O som das árvores e todos os outros sons que ela abriga também se
perdem quando ela é cortada. Certamente essas árvores que produzem sons com
seus galhos e folhas, também trazem pássaros, cigarras, micos, que por sua vez
igualmente participam sonoramente da paisagem sonora desse percurso. Como um
rio ruidoso, caudaloso de forte correnteza, não encontrando resistência o ruido
da cidade segue seu curso invisível e por incrível que pareça, sem ser
percebido pela audição. O olhar e seu imperioso sentido da visão ainda rege as
normas da ecologia.
“No
passado havia santuários emudecidos onde qualquer pessoa que sofresse de fadiga
sonora poderia refugiar-se para recompor sua psique. Poderia ser nas florestas,
à beira-mar ou numa encosta coberta de neve durante o inverno.”(Schafer,R.
Murray, 1977)
A arquitetura do percurso
Neste percurso registrado
pelo vídeo, é importante relatar sobre as construções que estão visíveis no
enquadramento da câmera do celular. É possível observar a diversidade de
estilos e épocas nos traços dos prédios, fachadas, muros e outras estruturas
que revelam uma das características deste bairro das laranjeiras, o de abrigar
uma paisagem arquitetônica multifacetada. Assim que a câmera começa a registrar
a Rua Cosme Velho; aos 0:27 min surge a Casa da Embaixada da Romênia, em
seguida descendo a esquerda a Igreja São Judas Tadeu, um pouco mais a diante,
uma construção verde o Colégio São Vicente de Paulo, aos 1:07 min podemos
observar o magnífico Colégio Sion, ainda a esquerda aos 1:28 o famoso complexo
predial Pires de Almeida, seguindo um pouco mais o muro amarelo do recuado e
maravilhoso Edifício Monte, logo em seguida e ainda a direita a Igreja Cristo
Redentor, aos 2:39 min é possível avistar o chafariz em forma de concha da
Praça Ben Gurion e por fim ao entrar na Rua Sebastião de Lacerda aos 3:25 min é
possível observar as 4 casas gêmeas à direita do vídeo. Muitas outras
construções importantes não foram registradas pela câmera, mas que fazem do
Bairro das Laranjeiras um espaço fértil para quem gosta de apreciar e estudar
arquitetura.
Paisagem Urbana
Dizem que antes da inauguração
do Túnel Rebouças no dia 3 de
outubro de 1967 essa região era bem mais tranquila e com um perfil urbano
coerente com as características de um bairro residencial com muitas casas,
situado em um vale cercado de montanhas com pouca circulação de carros e com
vendedores gritando seus pregões pelas ruas. Ainda é possível perceber no
asfalto os trilhos dos bondes que circulavam por ali, assim como vendedores de
vassouras, de pão em suas bicicletas, e com muita sorte, vendedores com seus
cachos de caranguejos equilibrados, o amolador de facas faz tempo que não o
ouço. Mas durante o trajeto algumas coisas chamam a atenção. As ruas alternam
de largura, assim como as calçadas, enquanto as placas de aviso e comunicação
para os motoristas que parecem possuir um design ultrapassado se escondem da
visão entre fios e árvores. A ciclofaixa embora demarcada no asfalto ainda gera
certa insegurança. Transeuntes passando, chegando, atravessando as ruas e
calçadas numa manhã de segunda-feira. Ambulantes, ônibus, carros, caminhões,
bicicletas perpassando pelo trajeto anunciando o começo da semana. As ciclovias
embora deterioradas e eventualmente invadidas funcionam bem. O perfil
urbanístico do trajeto apresenta uma diversidade que abriga o crescimento
natural e o planejado. É possível observar resquícios das estruturas do passado
e do presente tentando conviver. A impressão que dá é que o fluxo de
urbanização que o túnel ofereceu não coube na estrutura tradicional do bairro
que ainda resiste. Um bom projeto acústico para a cidade certamente é aquele
que saberia manter e até resgatar os sons naturais e originários de um espaço
urbano e consiga mixá-los aos sons e ruídos da contemporaneidade.
“O projetista acústico incita a sociedade a
ouvir novamente modelos de paisagens sonoras lindamente modulados e equilibrados,
tal como ocorre, hoje, nas grandes composições musicais. O esforço final é
aprender como os sons podem ser reorganizados, de maneira que todos os
tipos possíveis possam ser - uma arte chamada orquestração.”(Schafer,
R. Murray, 1991)
Paisagem Sonora
A paisagem sonora para melhor ser observada e percebida se faz fechando
os olhos para apreciação do vídeo que gerou inspiração para esse texto.
Diversos tipos de sons podem ser ouvidos durante o trajeto. Dois deles sempre estarão
presentes ora mais, ora menos durante todo o percurso. Um deles os ruídos da
minha bike: o som da roda girando, da estrutura do pedal, corrente e coroas, os
freios. O outro também sempre presente o fluxo ruidoso e constante da cidade,
que é constituído de inúmeros sons tais como: ar refrigerados, ônibus, carros,
motos, gritos, falas, buzinas, rádios ligados, entre muitos outros sons urbanos.
Este trajeto foi feito por uma bicicleta cortando e enfrentando o atrito
do elemento ar que é composto diversos tipos de gazes, que por sua vez propagam
o som. Ondas sonoras invisíveis aos nossos olhos estão se propagando em
diversas amplitudes, entrecortando-se em diversas direções. Imagine várias
pedras de diversos tamanhos sendo atiradas ao acaso e simultaneamente num lago
sereno ou num remanso de um rio produzindo lindos desenhos circulares de
diâmetro e de duração diferente na superfície. No ar, está sempre acontecendo a
mesma coisa através de pulsos energéticos oriundos de alguma perturbação física
que gere esta oscilação e não faltam fontes sonoras numa cidade. Acho, mesmo
para os mais especialistas e acadêmicos que estudam e se interessam pelo o
fenômeno sonoro, vale sempre “lembrar que um copo vazio está cheio de ar”
(Gilberto Gil).
A inspiração poética e musical está ligada com o ambiente sonoro que
cerca os compositores. Vários compositores de um passado mais silencioso se
inspiraram em temas e motivos da natureza em suas obras. O bairro das
laranjeiras abriga uma forte tradição de artistas, poetas, filósofos e
compositores. O cuidado com os projetos acústicos urbanos também beneficia a
manutenção de um pensamento criativo e crítico do bairro.
Imaginemos agora que o percurso fosse um rio. Um rio sonoro que começou a
ser registrado por um dos seus afluentes; calmo, tranquilo, com pouca massa
sonora, repleta de sons naturais e de prenúncios de silêncio. Este afluente, no
caso a rua Smith de Vasconcelos, que desce lentamente com seus sons de
maritacas, com seus poucos ruídos matinais e pitadas de silêncio. Aos poucos
este afluente sonoro vai se encontrando com um grande fluxo sonoro ruidoso que
desce morro abaixo. No chão, um asfalto ideal para propagar o veio ruidoso, que,
se fosse poroso, menos compactado, talvez reduzisse a propagação contínua desse
rio sonoro cuja sua intensidade está apenas começando como pode ser escutado no
vídeo.
A rua Cosme Velho possui em suas encostas uma arquitetura com casas e
prédios recuados que permitem que as ondas sonoras se espalhem diminuindo a
força do fluxo ruidoso, mas que, por sua vez continua implacavelmente crescendo
conforme nos aproximamos da altura rua General Glicério.
Já na Rua das Laranjeiras podemos observar que os prédios começam a
ficar mais altos e colados uns aos outros. A essa altura os ruídos seguem seu
fluxo com mais intensidade. Literalmente canalizados pela estrutura de cimento
compactada dos prédios construídos colados uns aos outros, todos a próximos a
via principal, a massa sonora repleta de ruídos parece seguir em forte
velocidade e intensidade. Imperiosa, essa corrente sonora, atrai para si como
uma força eletromagnética todos os ruídos que estão próximos e os transforma
numa massa caudalosa sem anteparos que possam reduzir sua força.
O percurso deste rio sonoro, por ironia do destino segue o mesmo curso
do rio Carioca que está abaixo do asfalto. O asfalto impermeável separa os
dois. Por baixo um rio importante para a história Rio de Janeiro, seu nome
batiza aos que aqui nascem e vivem, segue escondido, enterrado numa cripta
asfáltica. E por cima uma corrente sonora ruidosa, turbulenta, invisível que
nos atravessa sem nos darmos conta, que talvez nos influencie à esquecer quem
somos e para onde vamos, um ruído
constante e hipnótico
É interessante perceber que ao entrar no afluente
sonoro à direita na rua Sebastião de Lacerda, final deste percurso, o som imediatamente
perde sua intensidade. Observa-se logo o esplendor arquitetônico das quatro
casas gêmeas na beira da rua, praticamente sem muros, parecendo ser as guardiãs
de uma romântica e bucólica paisagem sonora de outrora. O áudio do vídeo, revela
claramente a saída do fluxo da torrente sonora da rua das Laranjeiras entrando como
em um remanso, é algo instantâneo, volta-se a escutar o som da bike e de outros
eventos esparsos, percebe-se a presença de algo como uma massa silenciosa. Um
bolsão de ar mais silencioso, um remanso sonoro, à espreita, não conseguindo
penetrar e no grande rio de massa sonora contínua seguindo seu curso imperioso
em direção ao Largo do Machado.
“O progresso das civilizações criará mais ruido
e não menos, disso estamos certos.Daqui a um século, quando o homem quiser
fugir para um local silencioso, pode ser que não tenha sobrado nenhum lugar
para onde ir.”(Schafer,R. Murray, 1977)
1 Educador Musical, Musicoterapeuta e Compositor. Mestrado em Educação
Musical (CBM), Graduado em Musicoterapia (CBM), Pós-graduado (s.l) em
Construtivismo e Educação (FLACSO). Extensão “Hands on music” Orff Socity (UK)
– Atualmente dirige e coordena as atividades do Espaço Musical 23 no Rio de
Janeiro.
Link do vídeo: (https://youtu.be/PVnNMFWgv1s)
Link para ler todas as publicações: https://escolaemtranse2020.wixsite.com/meusite/c%C3%B3pia-escola-em-transe-3%C2%AA-publica%C3%A7%C3%A3o
Bibliografia
Schafer, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Editora Universidade
Estadual Paulista,1991.
Schafer, R. Murray. São Paulo: Editora UNESP, 2001
Krause, Bernie. A grande orquestra da natureza. Rio de Janeiro: Zahar,
2013.
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