quinta-feira, 4 de maio de 2023

Reflexões poética/musicais: Música e Alzheimer.



 José Henrique Nogueira


Há muitos anos venho trabalhando “Música e Alzheimer” aqui no meu ateliê, o Espaço 23. Ao longo desse tempo, venho fazendo anotações sobre minha prática. Fatos interessantes que acontecem durante nossos encontros, ideias para atividades futuras, enfim, anotações que me auxiliam em meus planejamentos.

Porém, em paralelo a essas anotações diretamente ligadas aos atendimentos de musicoterapia, por algum bom motivo, elaborei reflexões um pouco mais profundas e pessoais, que aqui denominei de "poéticas/musicais", que ajudaram a me revigorar e me motivar durante esse trabalho tão bonito, porém, muito intenso e complexo. Ao todo, são sete (Ritornello; Silêncio; Memória; Expressão; Estética; Música e Dança) pequenos textos com temas diferentes, que estão diretamente relacionados e vivenciados na minha prática.

 

                                       

Ritornello

 

Nada mais torturante, ou interessante, que a repetição contínua de um som em intervalos regulares e contínuos num longo período de tempo. A repetição inebria, mas também pode calcificar as possibilidades musicais. O músico vive a repetição para chegar ao virtuose. O bailarino repete centenas de vezes o mínimo gesto em busca da perfeição. É viver próximo da angústia do ritornello sem fim. Esse “fenômeno” também acontece em meus encontros musicais com pacientes com Alzheimer. Muitas vezes vivemos a repetição de uma melodia, de um ritmo. Tento sair do círculo improvisando sobre ele. Ornamento e crio procurando uma saída. Vivemos um eterno retorno à tônica na continuidade de um arpejo. Alterno a posição da tônica, o que de certa forma me traz uma sensação prazerosa. Outro tom, outro mundo, outra viagem. Interfiro sobre os arpejos com improvisos, embora não saiba bem ao certo a que servem, se estão propiciando algum prazer. Se estão apenas satisfazendo meu incômodo. Arpejos, mudanças de tônicas e improvisos. Improvisos, mudanças de tônicas e arpejos. Mudanças de tônicas, arpejos e improvisos. Sem perceber, estamos em círculo. A vida é circular, espiral sem fim.

 

                                                    

Silêncio

 

O silêncio é na verdade quem rege nossa relação. A sintonia entre o indizível e o impensável. A fina camada que sustenta nossa parceria. Os olhos expressam nossa melodia com possibilidades de chuva e de tempestade. Não sei por que o silêncio entre nossas palavras não ditas parece tão revelador. No contínuo fervor do trabalho, não percebo o quanto recebo. Muitas das vezes não paro para refletir: sigo com a música da mesma forma como se estivesse respirando, apenas respirando. Acompanho o adormecer lento de sua fala, dos gestos, dos cantos e dos movimentos. Quando paro, reflito sobre meus excessos, sobre minha ansiedade. Do olhar, retiro a alegria, a certeza e a certeza de seguir em silêncio. Silêncio que também é música.

 


Memória

 

Não lembro mais quantos encontros e alegrias tivemos. Depois de tantos minutos juntos com a música, parece que escrevemos uma sinfonia, ou melhor, uma ópera. Tudo começou com uma retrospectiva sobre o passado, uma entrevista buscando peças para organizar os quebra-cabeças durante os atendimentos. A memória eram os nomes, as palavras, letras das músicas e melodias. Fatos marcantes vêm à tona, emergem, respiram e voltam a mergulhar. Faço uma analogia com os cachalotes, que, depois de cumprirem seu tempo na superfície do oceano, mergulham verticalmente nas profundezas do mar, numa atitude aparentemente inexplicável. Assim é o vai e vem e vai da memória, que parece acontecer no Alzheimer. As lembranças musicais precisam ser rapidamente resgatadas para fazerem parte da relação. Emociona saber que a música se mantém presente mesmo quando a fala se vai. Ela, a música, e tudo o mais que possa ser entendido como música são expressões sutis que os pacientes nos emitem, buscando no tênue fio que ainda existe de sadio entre nós. É importante criar um novo sistema de radar para interceptar as nuances das respostas da memória. A música está no olhar, na respiração, na impossibilidade, no silêncio.

 


Estética

 

Nunca segui uma linha, uma tendência, um gênero musical como se fosse algo que representasse minha personalidade. Minha estética sempre esteve escorada em alguns parâmetros, como coerência, poesia, acabamento e clareza. Na verdade sempre vivi em momentos: momentos italianos, momentos ingleses, momentos baianos, momento cearenses, momentos blues, momentos clássicos, momentos ruídos e silêncios, sempre fui plural e também muito curioso. Talvez essa colcha de retalhos, esse ouvido multifacetado tenha me facilitado entender e conviver com os gostos alheios sem nenhum crivo estético. Aceito a música que vem do outro sem nenhum desgaste, pois sei que será com ela e através dela que faremos nossas trocas e tentaremos entrar em sintonia. O canto desafinado me interessa, as melodias mal tocadas trazem informações, o ritmo inconstante ou repetitivo faz parte dessa festa, o grito, o grunhido, o gutural são necessários e de difíceis leituras, principalmente pelo estranhamento estético. Para trabalhar com musicoterapia, para se utilizar a música com finalidade terapêutica é necessário aventurar-se em várias direções sonoras e musicais. Embarcar numa viagem, sem medo, muitas vezes sem volta.

 


Música

 

Numa situação terapêutica, é preciso sondar, revirar, procurar como a música perpassa a história da pessoa. Camuflada na impossibilidade de ser cantada ou tocada, faz-se uso do apoio familiar para traçarmos um histórico musical. A música permeia a relação, cria o elo entre as duas partes. Conhecer a história musical, os compositores e músicos que encantaram a outra pessoa significa compartilhar suas emoções, vibrar com seus momentos felizes, silenciar com suas perdas, respeitar seus mitos. Significa redescobrir a tenra infância, perpassar a meninice, emaranhar-se na adolescência, emocionar-se quando adulto e refletir em melodias silenciosas na velhice. Quando a melodia começa a ficar repleta de pausas é o momento de observar os pequenos gestos, os pequenos detalhes: seja um dedo mínimo se movendo ritmicamente, uma fração melódica vinda dos lábios, um olhar ligeiro que ainda brilha, um suspiro profundo de prazer. As musas, muito mais do que as técnicas, saem e sobrevoam nossos encontros. Música é pura emoção.

 


Expressão

 

Assustado fiquei, quando, ainda pequeno, vi passar um garrafeiro com seu burro sem rabo em Niterói. Me lembro, embora lembranças pareçam sonhos, de que me escondi por detrás das pernas compridas do meu pai. Ele, percebendo meu desconforto, imediatamente se agachou e olhando nos meus olhos, disse: - Escute, filho, ele está assoviando... quem assovia pela vida tem um coração bom. Nunca mais esqueci esse ensinamento e, dali por diante, esse fato acabou me servindo para nortear e minuciar minha atenção às expressões musicais das pessoas. É assim a vida, são fatos, muitas vezes da infância, que acabam por dirigir nossos interesses e desejos. Gosto de colocar música na vida das pessoas. Gosto de observar os detalhes, as manias sonoras e musicais que cada um carrega em suas atitudes. Algumas personalidades são de poucas notas, um bater de pé, um dedo batendo na mesa, um balançar de cabeça, um fechar de olhos silenciosos. Outras são ruidosas, passam marcando seu território com músicas e sons, demonstrando maior intimidade com essa forma de expressão. É com essa atenção que vou seguindo os resquícios expressivos que vão sendo apresentados pelos portadores de Alzheimer. O declínio evidente das manifestações expressivas não significa que devemos deixar de trabalhá-las e de incentivá-las, de continuarmos acreditando na influência da música na misteriosa fisiologia cerebral que nos mantém vivos.

 


Dança

 

Quem veio primeiro, o som ou o movimento? O gesto, o passo, o pulo, a queda, o atirar-se no espaço sugerem sons ou são apenas movimentos silenciosos? Inspiradora essa relação do som com o movimento, porém quando saímos da esfera subjetiva e partimos para a prática da dança, as coisas mudam de figura. É muito difícil soltar as amarras do corpo. O outro que nos olha e que não existe parece proibir, cercear as possibilidades corporais no espaço. Numa relação terapêutica musical, há um momento em que o som por si só não basta, ele pede o gesto, o movimento e convida a dançar. E assim, dançamos. Algumas vezes ao som de suas músicas prediletas e outras sugeridas por mim. Escolho aquelas que criam um ambiente favorável para que este corpo que carrego livre-se dos preconceitos e das impossibilidades e interaja com o espírito feminino que pede para dançar. Terpsícore, na mitologia grega, a musa da dança, gosta de atenção, galanteios, elogios, carinho, alegria e principalmente de diversão. Minhas alunas com Alzheimer certamente continuarão gostando de dançar enquanto puderem. E mesmo depois que a imobilidade do mínimo gesto se instaurar, o som, ainda presente, poderá trazer as lembranças do balé, do arrasta-pé, da valsa, dos bailes da vida. Trabalhamos não para resgatar o que se perdeu, investimos sobre o que existe de saudável percebido ou imaginado. É preciso e imprescindível dançar!