domingo, 2 de abril de 2023

Você sabe assobiar?

                                                    MEMÓRIA MUSICAL

José Henrique Nogueira

Musicoterapeuta e mestre em educação musical pelo    Conservatório Brasileiro de Música (CBM-CEU).L

Você sabe assobiar?



Eu vivi uma época em que muitos assoviavam e cultivava-se o hábito de pesquisar diferentes possibilidades sonoras do assobio. Era comum, para mim, ouvir o silvo do assovio do meu pai, preenchendo com lindas melodias, o silêncio bucólico das tardes dos finais de semana. Ele assobiava em momentos de breves trabalhos domésticos: trocando uma lâmpada, serrando uma madeira, apertando um parafuso, enfim parece que o assovio criava um ambiente sonoro propício ao trabalho e ajudava passar o tempo. 

Também era comum escutar o seu assovio quando chegava a noite em casa do trabalho. Era uma breve e ritmada melodia (ostinato) específico com 2 ou 3 notas no máximo, como se fosse uma marca sonora que anunciava  a sua chegada.

Os meus tios, irmãos no meu pai, também cultivavam esse hábito. Assoviava-se na janela olhando os transeuntes passando pela rua, na mesa naquele momento de “tristeza” pós refeições, geralmente belas e breves melodias que tive a sorte de conviver, ouvir, agora lembrar e escrever, que é como se estivesse ouvindo novamente.

Quando menino eu e meus amigos assoviávamos com prazer, aparentemente por pura brincadeira. Mas hoje penso que  poderíamos estar demarcando nosso território sem saber. Na rua onde morei assoviávamos para chamar os amigos em suas casas, pela ruas e calçadas. Tínhamos os assobios comuns ao nosso grupo, acontecia sem nenhuma tipo de planejamento, quando víamos, ou melhor ouvíamos, o assobio, nossa marca, patente sonora já havia sido definida.

É importante lembrar que estou falando de uma região onde os prédios eram baixos, quatro andares quase sempre e alguns como eu, moravam em casas que não havia interfone para anunciar a chegada. Casas usavam campainhas, prédios tinham campainhas para chamar o porteiro ou zelador quando a portaria estava fechada e era comum todos olharem de suas janelas para verem quem tocava. A brincadeira sonora de tocar a campainha e sair correndo, devo confessar era uma saudável estripulia que nos proporciona muita alegria.

O assobio tinha uma função de chamado, de aproximação e de comunicação. Chamávamos também as meninas, assim como nossas namoradas que apareciam na janela com vigor, com o sorriso estampado e antecipado pois já sabiam quem iriam encontrar.

Embora tivéssemos o assovio comum do grupo, cada um também tinha seu tipo de assobio.  Era comum ficarmos procurando por timbres diferentes a partir de técnicas diversas; com os dedos das mãos, comprimindo os lábios e a língua, com a mão em forma de concha. Enfim, sem nos darmos conta, além da alegria do momento, marcava-se o nosso território, pois certamente o som era ouvido ao longe. Muitas das vezes, algumas delas no silêncio da noite, assobiávamos de casa, na janela, no portão e outros assobios em respostas eram ouvidos. Alguns deles podíamos reconhecer como sendo de nossos amigos, outros não, pois havia aqueles assobios que vinham com o som bem fraquinho pois estavam bem distante, de outras ruas, outros meninos, outros territórios sonoros.

Meus assobios são esses: o tradicional fazendo bico; com este consigo fazer melodias. Sei também utilizando quatro dedos, indicador e médio de cada mão. Eu consigo também assoviar utilizando dois dedos um de cada mão: só dois indicadores, dois médio, até os mindinhos. Com os dois polegares não consigo.

Com muito orgulho assobio com a mão em forma de concha. Com essa técnica consigo variar as alturas os sons, graves e agudos. Conseguia, na época, com a mão em forma de concha com os dedos cruzados, um som único, com pouca alteração na altura do som.

Cheguei a ver alguns assoviando com um dedo só, outros assoviando comprimindo os lábios, alguns com a língua pra fora enrolada. Certamente existem muitas outras técnicas de assobios.

Ao longo desses anos trabalhando em instituições de ensino pouco ouvi as crianças brincando de assoviar, fora alguns momentos das minhas aulas de música que estimulava esta prática sonora.

Fiz questão de ensinar as minhas duas filhas a assoviar ainda pequenas. Assoviam até hoje. Conseguem elaborar pequenas melodias e particularmente me sinto muito feliz e orgulhoso por terem adquirido esta habilidade.

Certamente o assobio ainda continua sendo um hábito cultivado. Alguns povos ainda se comunicam através dele, algumas pessoas principalmente os que vivem fora dos centros urbanos, conseguem imitar os pássaros com muita perfeição. Mas não resta dúvida que esta habilidade sonora vem perdendo seu prestígio. Com isso, o som do assobio, deixa de fazer parte do território sonoro que ocupava. Da mesma maneira que o som do amolador de facas, as vozes dos ambulantes com os seus “pregões”, assim como tantos outros que vem sendo silenciados. 

O primitivismo sonoro presente no assobio nos conecta aos nossos ancestrais, possivelmente os pássaros nos inspiraram, ou simplesmente o acaso de um sopro proporcionou uma sonoridade que instigou a curiosidade humana e fez surgir esta maravilhosa e pouco explorada habilidade sonora; o assobio. 

Você sabe assobiar?